Crítica | Chega de Fiu Fiu

Documentário brasileiro discute sobre assédio e traz a realidade das mulheres

 

“Naquela noite, voltando do trabalho, metrô lotado, senti algo quente na minha calça. Quando olhei para trás, deparei com um cara com o zíper aberto. Comecei a debater com ele, comecei a bater no rosto dele (…). Gritava feito uma louca dentro do metrô, com esperança que alguém segurasse, impedisse que ele fechasse a calça, mas ninguém ajudou.”

 

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Um olhar que intimida e incomoda; um assovio que constrange; uma palavra que traz desconforto; um toque indesejado que dá medo. Praticamente toda mulher já passou por isso ou por coisas piores. O assédio nas ruas sempre foi algo normalizado – até mesmo por algumas mulheres que são assediadas, mas que não têm noção de que isso é, de fato, assédio. O documentário Chega de Fiu Fiu aparece como uma resistência que pretende mudar isso.

Dirigido por Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, Chega de Fiu Fiu é um documentário que trata de algo corriqueiro que praticamente toda mulher sente: a insegurança em ocupar o espaço público. Qual é o papel da mulher nas cidades? Será que a cidade é mesmo pensada para todos? Para explorar este assunto o longa conta com uma diversidade muito rica de mulheres, o que serve para mostrar que, independente de suas diferenças, mulher é mulher e todas elas sofrem com o peso de seu gênero.

O documentário tem sua narrativa principal moldada pelos depoimentos de três mulheres: Rosa, uma mulher transexual; Raquel, mulher negra, gorda e lésbica e Teresa, mulher branca e de classe média. A diversidade dessas mulheres é um ponto extremamente importante da obra porque sai um pouco do que chamamos de “feminismo branco”. Mulheres trans e/ou mulheres negras, por exemplo, enfrentam problemas e preconceitos diferentes e muitas vezes isso não é explorado quando vamos falar de feminismo. Chega de Fiu Fiu expõe essa diferença – traçando, é claro, um ponto em comum entre essas três mulheres: nenhuma delas, por serem mulheres, se sentem seguras na cidade onde vivem.

A introdução de Chega de Fiu Fiu mostra as ruas das cidades gravadas de cima ao mesmo tempo que ouvimos relatos de mulheres que sofreram assédio (como um homem que ejaculou em uma das vítimas no metrô ou outra mulher que sofreu assédio sexual de seu uber enquanto ela estava bêbada) – o que nos dá a impressão (verídica) de que o documentário quer nos mostrar que esse tipo de coisa pode acontecer em qualquer rua, de qualquer cidade, com qualquer mulher.

Outro ponto interessante da introdução é o fato de que em um primeiro momento ouvimos depoimentos singulares de cada mulher; depois disso, várias delas começam a falar ao mesmo tempo, até que fica difícil compreender o que elas têm a dizer – mostrando que o assédio é algo contínuo que acontece com praticamente todas as mulheres. Isso mostra também que elas têm muito a dizer e que, por mais que elas digam, dificilmente elas são ouvidas. O papel de Chega de Fiu Fiu é este: fazer com que o espectador ouça e entenda.

 

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A narrativa do documentário também tem em sua composição uma diversidade de fontes: ele conta com os depoimentos de três personagens, a utilização de óculos com uma microcâmera escondida (utilizado por mulheres em seu dia-a-dia para mostrar o assédio escancarado dos homens), o diálogo com especialistas (historiadora, filósofa, ex ministra da secretaria de política para as mulheres e criadora da campanha “Chega de Fiu Fiu”), dados atuais sobre assédio, uso de vídeos gravados pelas próprias personagens em momentos de assédio e, por fim, uma roda de homens que discutem essa questão e expõem suas opiniões.

A escolha de dar voz também aos homens foi interessante porque, ao mesmo tempo que o assunto é discutido por ambos os lados (os oprimidos x os opressores), o documentário mostra como é importante ter esse diálogo com os homens. O feminismo ainda é um assunto muito mal visto pelas pessoas; é uma “palavra feia” que ninguém quer ouvir e entender o que ela representa. O diálogo com os homens é necessário para que eles consigam pensar além de seu horizonte e enxergar um problema sério, causado por eles, que ainda é muito enraizado em nossa sociedade. Como disse um dos homens do documentário: “Eu nunca tinha pensado que isso seria um problema e muito menos que ele precisaria ser resolvido. Agora o fato de você conversar sobre o assunto, você já ‘opa…’”.

Assim, utilizando-se de uma narrativa forte ao lado de músicas (prioritariamente cantadas por mulheres) impactantes, Chega de Fiu Fiu expõe uma verdade inquestionável: As cidades não foram feitas para as mulheres. Elas estão sempre um passo atrás – quando a mulher finalmente consegue conquistar o mesmo espaço público que o homem, ela ainda é intimidada, não recebe o mesmo salário que o homem, tem menos oportunidades, maior restrição e exigência em relação a trabalho e, acima de tudo, a mulher está constantemente recebendo assédio.

Chega de Fiu Fiu faz um trabalho maravilhoso ao evidenciar que o espaço público sempre foi de posse do homem e, por conta do ambiente hostil e intimidador que eles conservam, as mulheres simplesmente têm medo de sair de casa. O documentário aponta que isso não é algo normal e que deve parar de ser visto como tal. Apesar de ter seu foco nesse assédio que se limita ao “fiu fiu”, ou seja, a cantada, o longa não deixa de explorar também questões como o estupro, além de deixar a narrativa ainda mais rica com alguns fatos históricos.

Em suma, Chega de Fiu Fiu não é um documentário que simplesmente aponta o erro. Não é apenas uma denúncia (apesar de funcionar perfeitamente como uma). É um documentário que ensina. Que dá voz a mulher para que ela tenha um espaço para queixar-se e para educar os outros: tanto os homens que têm (ou não tem) consciência do quão grave pode ser um olhar, uma cantada ou um toque, quanto as mulheres que pensam em assédio como algo banal. O documentário aponta o erro, mas também aponta diversas soluções que precisam ser levadas a sério e colocadas em prática o quanto antes. Chega de Fiu Fiu é, portanto, a conscientização de um problema e um dos primeiros passos para consertá-lo.

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